domingo, 29 de novembro de 2009

À memória de Miguel Torga



Quando eu tinha 12 anos, propuseram-nos numa festa de escola, a récita de uma poesia de Natal.
Foi difícil a minha escolha, tanto mais que obrigatóriamente teria de haver alguma mímica em cena. Mas depois de ler " HISTÓRIA ANTIGA " foi paixão à primeira e bastou esse simples apelo do mestre de escola, para encher o meu coração de amor à poesia e meter na minha vida o gosto pela palavra, só porque me encontrei com MIGUEL TORGA.





História Antiga


Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava , e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.


E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia ,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.


Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.






sábado, 28 de novembro de 2009

Amigas




Algumas das minhas amigas mais chegadas, já são avós.
Com idades mais ou menos próximas da minha, este não é o pormenor que mais mexe comigo. O que verdadeiramente me causa algum desconforto, é aquele embevecimento agastado que lhes sobe à cabeça, sempre que a conversa recai nos benditos rebentos.
E o meu incómodo nada tem a ver com o contentamento destas minhas amigas. Não. Tem sobretudo a ver, com esse efeito contagiante que se apodera de mim e me envolve na relação, como se eu fosse, sei lá..."a outra avó"

E o facto é tão surpreendente, que em alguns momentos do dia mais ou menos desocupados, dou por mim roidinha de cobiça, (chamo-lhe assim, por não saber bem o que é) a rever as fotos dos ditosos, que amorosamente guardo.
Confesso que o telefone é outro impulso que nestes momentos retraio, mas não perco a oportunidade, sempre que possível, de atiçar aquele brilhozinho nos olhos destas minhas amigas e de lhes fazer soltar cá para fora ,todo o enlevo, toda a ternura que lhes vem de sobejo... E fico sempre sem saber se o faço por elas ou se o faço por mim.





maria

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

divagando


Hoje fui chamada ao Centro de Emprego da minha área de residência para uma reunião rotineira.
É a minha primeira vez como solicitada e estou numa sala de espera apinhada de gente e garanto-vos que é uma sensação muito muito estranha.
Aqui, deixamos de ser o fulano A ou B e passamos a ser o colectivo, tudo com o mesmo sêlo na testa.
De costas para o interior, é oportuno sentar-me virada para a porta, ou seja para a plateia. As pessoas que estão sentadas à minha frente, todas viradas para mim, têm rostos diferentes das que vejo lá fora, através da parede de vidro que se me expõe.O jornal gratuito e os telemóveis fazem parte do jogo de espera, mas os sentidos concentram-se no marcador de senhas ou no vigilante que atrás de mim solta os passos e a voz grave, tentando advertir os mais distraídos à chamada, meros números.
Olho em frente e os pareceres têm todos o mesmo semblante soturno, quase anémico, cabeças de gesso que apenas movem os olhos e arqueiam o sobrolho quando tocam outro olhar.
Há uma ala do meu lado esquerdo que fala muito e fala de tudo, até das cadeiras que não têm para ficarem ao nível dos outros; são muito agitados, passam à frente,voltam atrás, e empurram, pedem desculpa ou então não, barafustam, discutem, encontram amigos, soltam exclamações agudas... não paralisam o rosto.
Mas eu prefiro observar os solitários como eu, sentados à minha frente, como condenados, rendidos à injustiça dos tempos, na espera sôfrega de um prato de papas.
Baixo os olhos para escrever, este é o meu rende tempo, e depois volto a olhá-los. Podia perfeitamente fechar os olhos e continuar a descrevê-los, eles são uma extensão de mim. De vez em quando há um pescoço que se ajeita e se estica, e uns olhos que se esforçam para um ângulo mais elevado da sala. Reparo então que há um televisor na função "mute" do meu lado direito , cuja imagem não consigo ver.
Alinhadas em filas paralelas, posso saltitar de cabeça em cabeça, de rosto em rosto e nem um só sorriso. Une-as o silêncio que lhes vai na alma e partilham todas a mesma cruz, provavelmente a mesma dor.
Afigura-se-me uma outra imagem, tão minha como esta aqui, e penso que se esta fosse uma sala de espera de um hospital, na melhor das hipóteses, teria uma cena semelhante: os mesmos olhos tristes e doídos, o mesmo desespero no peito, a mesma impotência, a mesma passividade, o mesmo sentimento de injustiça que paralisa os músculos, a mesma entrega a alguém, sabe-se lá a quem, que é juiz e conselheiro da nossa conduta, do nosso infortúnio, da nossa falta de liberdade...
Volto a esta realidade e asseguro-vos que não fui a única a ausentar-me, os mundos destas pessoas cruzam-se aqui em olhares vagos e distantes que a pouco e pouco se reaproximam deste lugar em pestanejos suspirados.



maria