domingo, 27 de junho de 2010

A NOSSA TITI


- Titi, conte o conto das calcinhas vermelhas...
- Está bem. Mas queres que to conte ou que to diga???
- Que mo diga...
- Então? mas... queres que to diga... ou que to... conte???
E os olhos iam-se- lhe fechando de cansaço, num abandono tão profuso de si mesma, que rapidamente caía num sono solto. Retirava então as minhas pequenas mãos de dentro dos lençóis, e abanava-lhe violentamente os ombros.
- Titi!! Está a dormir...
- Na aõ oo... e arrastava a voz, entreabrindo os olhos num esforço tremendo para continuar a história.
- Vá... diz lá. Queres que to diga... ou que to conte???
- Que mo conte, já disse...
E o conto era assim cadenciado, entre a minha energia que dificilmente abrandava com o cair da noite e a sua fadiga, acumulada na dureza dos dias, naturalmente exposta e pronta a ser aliviada no seu ritmo mais merecido.
Creio mesmo que nunca concluímos esta história, porque apenas me recordo do começo. Era uma vez...
E até onde vai a minha lembrança, perderam-se as palavras que poderiam ter sido ditas. Ficaram por escrever, histórias intensas de vidas simples, fadadas na memória dos tempos que se puderam viver.
E o resto... o que me apetece dizer e não digo, porque não sei... murmuro a Deus numa prece: - Que hoje, no seu 80º aniversário, a sua luz celestial brilhe um pouquinho no coração de cada um de nós, para matarmos saudades.


maria


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terça-feira, 22 de junho de 2010

Verdadeiros Amigos


Às vezes é no canto da vida que encontramos os amigos.
Cada um de nós é uma história. E a "nossa" história começa, onde algo da minha vida esmurece.
Talvez o Amor, talvez a Esperança... É difícil saber o que se apaga em nós, quando o ânimo se esvai e a solitude se apropria.
A dor é um mal estar tão nosso que nos exclui, melhor, leva-nos a excluir o amor dos outros e sobretudo o amor de Deus, por nos julgarmos injustiçados.
E entre os momentos que vacilei e os momentos que desanimei, Deus encontrou uma fresta para me consolar e franqueou-me as portas da família Barata.
É bom conhecer amigos. É bom ouvir a Palavra de Deus. Mas a mistura não foi homogénea.
Moí e remoí a clarificação da Palavra. Os meus cinco sentidos passaram tudo a pente fino e levaram para casa as ideias, os comportamentos, os propósitos e os meus silêncios, que marcavam as diferenças. Vou ter de peneirar, pensava.
Mas o meu coração cingia-se de uma luz tão própria e consoladora, que dispensava essas minúcias.
Uma e outra vez, eu voltava, solícita, sequiosa, penso que pode até, ser esta a palavra , mas não sei bem de quê...
A Palavra de Deus eu já conhecia e ela não muda.
Há procuras em nós que são veredas de Deus. E os zigue-zagues da vida, são cansaços que Deus espreita para nos fazer crescer.
Descobri que o que animava esta minha disponibilidade, era, nada mais nada menos, que a saborosa partilha. Não a partilha comum, já experimentada noutros lugares e noutros tons, mas a partilha da autenticidade.
Aprendi com esta família a humildade do Ser, à maneira de Jesus.
Aquilo que mais falta lhes faz, é isso mesmo que eles partilham. Aquilo que os outros dizem não possuir, é isso mesmo que eles oferecem. Aquilo que arbitráriamente nos serve de escusa, é flexibilidade para eles. Estou a falar do "tempo", essa dimensão da vida, que a muitos tortura e a outros escapa, mas é BÊNÇÃO PRECIOSA PARA QUEM SABE AMAR NO AMOR DE CRISTO.
"...É o tempo que dispensamos aos outros que fazem deles importantes."
Segundo Rick Warren, "o tempo é a nossa dádiva mais importante, pois só recebemos uma quantidade fixa dele... O nosso tempo é a nossa vida. É por isso que o maior presente que podemos dar a alguém é o nosso tempo."
E é nesta latitude que Belas Vida alarga os seus horizontes.
"O tempo" abrange as necessidades de cada um e o esforço e a presença desta família vai mais além, porque os horizontes são celestiais e as promessas de Deus a serem cumpridas, estabelecem pontes de relacionamentos por onde Deus Pai se faz passear e se manifesta.
Para eles vai a minha admiração, o reconhecimento da importância das suas vidas para Deus e para nós, enquanto amantes de Deus. Mas vai sobretudo o Meu muito Obrigada por toda a minha transformação interior.
A vida acontece e com ela a surpresa de ver crescer " uma família" liberta para o amor, onde a abnegação é apanágio e tem um nome: JESUS.



(Despedida da Família Barata)

maria

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domingo, 13 de junho de 2010

SEGUE O TEU DESTINO


Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas
O resto é a sombra
De árvores alheias


A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios


Suave é viver só
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses


Vê de longe a vida
Nunca a interrogues
Ela nada pode dizer-te
A resposta
Está além dos deuses



Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.



Ricardo Reis








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Lisboa,13 Janeiro 1935






...A origem dos meus heterónimos, é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais própriamente, um histero-neurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia, que a histeria, própriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos, está na minha tendência mental, está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos - felizmente para mim e para outros - mentalizaram-se em mim, quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com os outros, fazem explosão para dentro e vivo-os a sós comigo. Se eu fosse mulher ---na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas - cada poema de Álvaro de Campos (o mais histéricamente histérico de mim de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais, assim, tudo acaba em silêncio e poesia...





Excerto da carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro
















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sexta-feira, 11 de junho de 2010

HISTÓRIA

O que mais me enfada nas viagens que faço de taxi, são os
silêncios alongados e perturbadores que me desajeitam os
movimentos e os tornam completamente descoordenados,
a fim de que se ouça qualquer som. Pode ser a minha mala
a abrir e a fechar, a agenda que tiro e retiro, o kleenex que
finge que limpa, enfim, qualquer coisa serve.
Mas nem sempre existe a necessidade de improvisar esta
mímica, há taxistas que são exímios acolhedores.
Tal foi o caso do Sr Manuel, há dias, no percurso Rossio-Oriente.
A propósito de horários e de comboios, a conversa foi parar
à Serra da Estrela e soubemos que éramos vizinhos, das
Beiras. Ele Beira Alta e eu, Beira Baixa.
Surgiu-lhe então a brilhante e inevitável pergunta:
-Sabe quem foi Viriato???
Claro que eu sabia muito bem quem tinha sido Viriato, conhecia-o desde a minha 4ª classe e respondi de imediato que sim.
Muito ao jeito da D. Antónia,( a minha professora da instrução primária) o Sr Manuel, não satisfeito, perguntou de novo:
-Então diga lá quem foi???
Senti o mesmo brio de quando tinha 9 anos e sabia a História de Portugal na ponta da língua.
E depois, Viriato tinha sido o chefe dos Lusitanos, que nascera nos Montes Hermínios, era o nosso herói das Beiras, quem não saberia?
Crescia-lhe algum orgulho no tom como ia fazendo as perguntas e eu soltava as respostas, mas fazia-o como se houvesse uma gradação para a dificuldade.
-E então onde é que nasceu Viriato??? perguntou muito sério, olhando-me pelo retrovisor.
Eu achei que já lhe havia respondido, mas, memórias relembradas, retomei o discurso histórico.
Viriato nasceu no ano 180 a C nos Montes Hermínios, Serra da Estrela, Beira Baixa, era meu conterrâneo, lutou contra os Romanos, foi morto à traição por 3 dos seus homens, que se venderam ao general Romano, etc, etc... contei a história toda que sabia e ainda lhe falei de Sertório, outro chefe Lusitano notável, que o seguiu nas lutas contra os Romanos...
Mas o Sr Manuel contrapôs:
- Nã-nã-nã-nã, Viriato era da minha terra, Viseu. Não conhece o monumento a Viriato???
Há quarenta e tal anos que eu conhecia Viriato, nunca tal ouvira dizer...Sempre fora boa aluna a História, no meu 12º ano continuava a tirar 19 nos testes e este taxista, viseense de raça, não só me estava a tirar os créditos, como me estava a fazer perder referências adquiridas, porque eu sempre pensei ou sonhei, sei lá...que Viriato era da Cova da Beira, porque não?
De Viseu só conhecia o Museu Grão Vasco e já era muito importante.
O Sr Manuel quis então contar das querelas que havia entre localidades vizinhas para se apropriarem da naturalidade do famoso pastor e guerreiro Lusitano, mas o terminus da viagem roubou-lhe o final heróico da história.
O curioso desta viagem, é que ao contrário de todas as outras que tenho feito, esta não acabou aqui. Criou em mim um tal desassossego, que me obrigou a vasculhar tudo quanto falasse dos primórdios de Portugal, ( Lusitânia ) para tentar perceber onde teria nascido o dito chefe guerreiro.
E desde a Cova da Beira que por brincadeira alvitrei, Castelo Branco, Alvega, Cabanas de Viseu, Viseu e Loriga que o reclama a pés firmes, Espanha Zamora, onde existe uma praça e uma estátua em seu nome, tudo são probabilidades. Ao certo ao certo, Sr Manuel, ninguém sabe.
Mas gabo-lhe esse seu olhar patriótico que lhe permite enaltecer a sua terra de origem e continue a dar lições de História de Portugal, sobretudo aos Lisboetas, porque eu não acredito que eles saibam quem foi o nosso ilustre conterrâneo.


maria

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domingo, 6 de junho de 2010

JOANA




Sabes Joana,
A morte não é preta nem é branca. A morte é da cor da nossa alma. Pode ser azul ou rosa, como essa flor que apertas contra o peito e teimas em guardar!
Pode não ter cor, como essas lágrimas que te molham o colo e te turvam o olhar. Mas, pode também, ser a cor de todas as cores, aquela que ainda não vemos, mas que é luz de fim de túnel e morada de todos nós.
Quando eu era criança, havia lá em casa, uma foto a preto e branco, com uma urna muito pequena, toda branca, em posição inclinada para se ver o interior. Talvez desejassem passar rápido aquela folha do álbum, mas para mim, era paragem obrigatória e pergunta com resposta. O meu Pai costumava responder que era um anjinho que tinha ido para o céu. Aquela era a morte que eu conhecia: Branquinha, vestida de anjo subido ao céu. E assim foi, durante muitos anos; Não que ela sorrateiramente e de uma forma" cruel" não nos fosse visitando, mas porque a nós, crianças, nos protegiam do lado mais acutilante dessas brutais separações.
Mais tarde, penso que de uma forma perfeitamente natural, com a maternidade, apreendi o lado absurdo da dicotomia vida/morte e recreei em mim o arrepiante espectro da morte. Digo recreei, porque embora num formato inconsciente, ele esteve presente em toda a minha adolescência, com medos e sustos de guerra que não eram verdadeiramente meus.
A morte não era entendimento, era medo e tinha essa mesma cor.
Hoje , Joana, tal como tu, tenho medo. Continuo a ter medo, mas posso relativizá-lo, porque deixou de ser absurdo. Vejo a real dicotomia da vida, Nascer/Morrer e percebo que há um propósito neste percurso, que pode eventualmente ser muito curto, ou não, mas que será sempre cumprido. Cabe a cada um de nós a responsabilidade de o aceitar e cumprir o melhor possível. E é nesta clarividência que se esvai o medo e permanece a luz.


maria



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quarta-feira, 2 de junho de 2010

EU



Estou em estado de graça.
Há muito que não sentia esta sensação de liberdade.
Parece que desliguei da ficha e não há mais nada, a não ser EU.
Há pouco mesmo, pensei no meu coração, parei até, para o ouvir. Nenhum sobressalto.
Cuidei que o pensamento se armasse em guerreiro e fosse desenfreado içar bandeiras de alerta, a desprazer, mas nem isso.
Reconheço esta paz de outros lugares, tão longínquos, sem tempo, que não lhe posso chamar minha. Mas sabe-me bem. É bom rever este EU. Pensei que o tinha perdido nas preocupações e nos medos da vida. Pensei que o tinha prendido a outro e a outros que agora sou eu, a vivificar.
Limito muito o meu circulo de prazer. Mais um pouco e é a vontade de me saber. Mais um pouco e é a rotina do ser...
Sustenho-me.
Por força das circunstâncias, obrigo-me a desligar o telemóvel. Os deuses estão por mim.
A Lua, gorda de luz , enfeitiça a noite e faz-me ébria de encantamentos. Alargo o meu circulo de prazer sem qualquer risco de o perder.
Nós somos muito mais do que nos sabem. Viajamos em nós, desacorrentados do bem ou do mal, conforme nossa vontade e entrega, se assim nos aprouver. E não haverá quem nos impeça...
Esta é a minha noite uterina, há tanto esquecida.

maria





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